quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Éle Semog, Poeta Negro

SE ELA FAZ, EU DESFAÇO

A treze de maio
fica decretado
luto oficial na comunidade negra
e serão vistos com maus olhos
aqueles que comemorarem festivamente
eesse treze inútil
e fica o lembrete:
liberdade se toma
não se recebe
dignidade se adquire
não se concede.
Éle Semog, 1976

Li esse poema nos Cadernos Negros, não me lembro bem qual número, e amei! Procurei pesquisar quem era o autor pois nunca tinha lido nada desse autor: Éle Semog.

Éle Semog
Éle Semog, como é conhecido Luís Carlos Amaral Gomes, poeta, escritor e ativista do Movimento Social Negro, nasceu na cidade de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Passou a infância e a adolescência nos bairros Vila Valqueire e Bangu, no subúrbio carioca. 

Segundo informações colhidas no próprio site do escritor, ele começou a trabalhar aos 17 anos, após a morte do pai e seu primeiro emprego formal foi na construção civil. Nesse período, com o apoio de um engenheiro, começou um trabalho de alfabetização na obra, ensinado os operários que não sabiam ler. 

Além disso, estimulava os companheiros para que se filiassem ao Sindicato, mesmo sabendo que não era um dos mais combativos.
Na década de 1970, fez parte do grupo Garra Suburbana, no qual publicou seus primeiros poemas mimeografados. Associou-se, em 1974, a uma das primeiras organizações negras fundadas durante o período da ditadura militar no Brasil: o Instituto de Pesquisas e Cultura Negra – IPCN. Na década de 1980, ajudou a fundar o jornal Maioria Falante e, também, o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas - CEAP, do qual foi presidente. Participou de vários livros e antologias e com o conto infantil “O nariz e a borboleta voa-voa” recebeu menção especial da União Brasileira de Escritores, em 1982.

Éle Semog participou da organização, juntamente com outros poetas do I, II e III Encontro Nacional de Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros, realizados no Rio de Janeiro e em São Paulo. Foi convidado como conferencista em duas Bienais Nestlé de Literatura, na cidade de São Paulo, do I Simpósio Internacional sobre Cultura Angola, na cidade do Porto, em Portugal, em 1982, do Programa de Celebrações e Reflexões dos 500 Anos de Descobrimento das Américas, conferências realizadas em 22 cidades da República Federal da Alemanha, em 1992 e do Congresso Internacional de Literatura Comparada, na cidade de Salvador, em 1998.

Semog pratica a militância através da literatura. Fundou os grupos “Negrícia Poesia e Arte de Crioulos” e “Bate Boca de Poesia” com os quais “realizou recitais e oficinas de literatura em escolas, universidades, sindicatos, presídios, hospitais, associações de moradores de favelas, teatros, na rua e nos trens da Central.” Alguns de seus poemas foram musicados por compositores como Irinéia Maria, Teo de Oliveira, Mauro Marcondes e Laércio Lino.

O autor busca dar voz às populações marginalizadas que até hoje têm que lutar para se ver representadas na nossa sociedade. Seus poemas são, de certa forma, autobiográficos. De acordo com Lejeune, “o espaço autobiográfico compreende o conjunto de todos os dados que circulam ao redor da ideia do autor: suas memórias e biografias seus (auto) retratos e suas declarações sobre sua própria obra.”

É o que Walter Benjamin denonina de literatura a contrapelo mostrando a realidade da população afrodescendente vitimizada pelos acontecimentos do nosso passado histórico. 

Benjamin (1987) diz o seguinte:
Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. [...] Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. [...]Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. [...] (BENJAMIN, 1987, p. 222-232)

Para a ensaísta Soares Fonseca,

Assumir-se negro numa sociedade cujos referenciais de beleza passam pelos traços europeus, que também nela se mostram, é uma atitude de enfrentamento quase sempre diagnosticada como decorrente de rancor que não tem motivo para existir. Em vez de lidar com as formas discriminatórias que produz, o senso comum descarta a questão porque acredita que vivemos numa sociedade que não tem preconceitos. O mito da democracia racial continua a se perpetuar entre nós. (FONSECA, 2011, p. 13).
Para Fonseca, o discurso que acaba prevalecendo e que circula na sociedade brasileira é o discurso hegemônico contra o qual alguns escritores negros têm se insurgido para mostrar a voz das minorias que durante muito tempo foi calada.
      Ainda segundo esse teórico
Assumir-se negro numa sociedade cujos referenciais de beleza passam pelos traços europeus, que também ela se mostram, é uma atitude de enfrentamento quase sempre diagnosticada como decorrente de rancor que não tem motivo para existir. Em vez de lidar com as formas discriminatórias que produz, o senso comum descarta a questão porque acredita que vivemos numa sociedade que não tem preconceitos. O mito da democracia racial continua a se perpetuar entre nós. (FONSECA, 2011, p. 13). 
Outro poema de Semog:



Engenhosa violência a do sistema,
que arrancava d’África os negros,
diziam ser aquele gentio peças das índias,
e os transportavam em fétidos tumbeiros.
Com sincera fé católica e voraz volúpia
por quase quatro séculos
Portugal, seu rei, suas elites,
construíram a história mais triste
que a humanidade tem para contar.
(SEMOG, 2010, p. 80)

   A autora Beatriz Rezende em seu texto “A literatura brasileira num mundo de fluxos” aponta que a literatura de autores emergentes tem como uma das características o predomínio de um tom autocentrado, o que faz com que sejam frequentemente acusados de praticar uma literatura egótica. Éle Semog, apesar de em seus poemas se referir a uma história coletiva, a história das populações marginalizadas, também faz referência à sua própria história.

sábado, 23 de janeiro de 2016

Resenha do filme Escritores da Liberdade






     O filme Escritores da Liberdade, dirigido por Richard Lagravenese, foi lançado no ano de 2007, nos Estados Unidos, pelo Estúdio Paramount Pictures. Com o título original Freedon Writer tem em seu elenco os atores Scott Glenn, Hilary Swank e Patrick Dempsey. A história é baseada em fatos reais, relatados no livro Diário dos Escritores da Liberdade, publicado em 1999, mostram a trajetória da professora Erin Gruwell, que estimula seus alunos a escreverem diários nos quais contam suas histórias de vida.

    No filme é narrada a história da professora Erin Gruwell, filha de um antigo defensor dos direitos civis durante os distúrbios raciais que ocorreram na cidade de Los Angeles, na Califórnia, em 1992. De acordo com a Wikipédia, os distúrbios de Los Angeles, em 1992, foram desencadeados em 29 de abril de 1992, quando um júri absolveu  oficiais do Departamento de Polícia de Los Angeles, três brancos e um hispânico, acusados de agressão contra o motorista negro Rodney King, após uma perseguição em alta velocidade. Toda a ação dos policiais foi filmada. Milhares de pessoas se revoltaram e provocaram tumultos e manifestações ao longo de seis dias     após o veredicto, configurando um conflito racial. Durante esses acontecimentos, cinquenta e três pessoas morreram e milhares de outras ficaram feridas. “Após o final dos protestos, uma profunda reforma na polícia de Los Angeles foi realizada, o que incluiu a demissão do chefe de polícia, e os policiais envolvidos foram novamente julgados.”
Recém-graduada, Erin vai lecionar na Escola Wilson, na turma 203, do 1º ano colegial. Nessa época, foi criada uma lei de integração racial segundo a qual brancos, negros, hispânicos e asiáticos eram obrigados a conviver no mesmo espaço.A Escola Wilson, que era considerada anteriormente um centro de excelência, vê-se obrigada a receber esses alunos com o comportamento totalmente inadequado e sem o devido preparo dos seus professores para trabalhar com essa clientela.

A verdadeira Erin Grunwell

No ambiente escolar, os alunos acabam reproduzindo as brigas de gangues, a discriminação, o preconceito e a segregação racial existentes na sociedade. A professora Erin chega na escola cheia de sonhos e ideais, mas se depara com essa chocante realidade e com a difícil e desafiante tarefa de, além de ensinar a disciplina Língua e Literatura Inglesa, ensiná-los a conviver uns com os outros.
Na verdade, esse tema sempre é discutido nos cursos de pós-graduação: a questão do preparo do professor; os cursos de graduação não preparam o professor para lidar com determinadas situações que ocorrem em sala de aula e cabe ao professor, além de ter o conhecimento e o domínio dos conteúdos que irá ensinar,também ter “jogo de cintura” para enfrentar situações conflitantes como essas retratadas pelo filme.
A professora Erin, mesmo não tendo experiência em sala de aula (e talvez por isso mesmo!) estava disposta a ouvir, a dialogar e a aprender como fazer para despertar o interesse dos alunos. Esse é o nosso grande desafio: o mundo lá fora tem coisas muito mais atraentes para o aluno que está interessado em ficar ligado no celular conversando com os amigos do Facebook, do WhatsApp e de outras redes sociais, vendo os vídeos do momento, os jogos da internet etc. Cabe a nós, professores, trazer os conteúdos das disciplinas com uma nova roupagem, utilizando novas linguagens, quando possível, integrando as novas tecnologias para tornar as aulas interessantes e envolventes, e que esses conteúdos tenham significado.
No primeiro dia de aula, a professora Erin testemunhou uma briga de gangues e teve que pedir ajuda de um segurança para apaziguar os ânimos. 


A briga 

A partir daí, ela começou a observar que os alunos dentro da sala de aula ou no pátio sempre se agrupavam por etnias: negros, orientais, hispânicos e brancos não se misturavam; então, ela resolveu aplicar uma dinâmica, o jogo da linha, no qual ela citava alguma característica e, caso os alunos se identificassem com ela, se aproximariam da linha ou, se ocorresse o contrário, se afastariam da linha. Ela proporcionou àqueles alunos a oportunidade para que se observassem, que olhassem um para o outro enxergando as semelhanças que os aproximavam.
E o que aquela dinâmica tinha a ver com a disciplina Língua e Literatura inglesa? Nada! Mas, para ensinar a disciplina, primeiro ela tinha que trabalhar e amenizar os conflitos existentes na sala de aula, aproximando os alunos uns dos outros e dela mesma. Essa cena demonstra a sensibilidade que o professor precisa ter para enxergar o aluno como ser humano com sentimentos, problemas, conflitos e que a agressividade é apenas uma forma de demonstrar que algo não está bem. E, se as coisas não estão bem, é lógico que o aluno não vai conseguir manter a atenção em disciplinas que em determinados momentos não lhes dizem nada.
Essa é outra discussão que sempre ocorre nos cursos de pós-graduação: o professor é pago apenas para ensinar a disciplina, ele não tem que aplicar técnicas e dinâmicas como fez essa professora do filme; “isso é tarefa para psicólogos, psicopedagogos, terapeutas grupais etc.” Particularmente, eu não compartilho com essas opiniões, acho que devemos fazer o que for necessário para trazer o aluno para perto, para despertar-lhes o interesse e oportunizar situações de aprendizagem.
Outra cena muito interessante é quando ela propõe a escrita de um diário no qual eles contariam suas histórias de vida ou, simplesmente, o que quisessem escrever. Os alunos, no princípio mostram-se desconfiados pensando, talvez, “o que essa professora quer saber das nossas vidas e por quê?”. Mas, em outro momento de sensibilidade, ela deixa claro que não lerá os diários a menos que seja autorizada por eles: os alunos que quisessem que seus diários fossem lidos deveriam deixá-los dentro de um armário que seria trancado ao final de cada aula. Um dia, a professora abre o armário e, para sua surpresa, todos os diários estavam lá, ou seja, ela conseguiu conquistar a confiança de modo que eles quiseram que suas histórias fossem lidas por ela.
Além disso, ao invés de ensinar a gramática da língua inglesa, ou seja, a teoria, ela propôs aos alunos que escrevessem seus próprios textos, que utilizassem a língua na prática. Com essa atitude, ela conseguiu envolvê-los em uma atividade que tinha significado e sentido para eles: escrever sua própria história.
Apesar de todo o esforço feito pela professora Erin para amenizar os conflitos na sala de aula, eles continuaram ocorrendo. Um certo dia, uma caricatura desenhada por um dos alunos da turma para humilhar um outro  estudante, que era negro, circula pela sala até que vai parar em suas mãos. Então, indignada, a professora faz um paralelo entre os conflitos raciais dos Estados Unidos daquela época e o holocausto ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial, praticado pela raça que se considerava “pura”, a raça ariana, contra judeus, negros, homossexuais ou qualquer raça que fosse considerada inferior pelos nazistas. Nesses contextos, tanto nos conflitos raciais dos Estados Unidos quanto no Holocausto ocorrido na Segunda Guerra Mundial, o preconceito e o racismo baseados nas diferenças fizeram com que o “diferente” fosse visto como inimigo que precisava ser eliminado.

Anne Frank

Como desdobramento dessa aula, ela propõe uma atividade na qual cada aluno escreveria cartas para a Senhora Miep Gies, que durante a Segunda Guerra Mundial escondeu a família de Anne Frank em um edifício. A punição para os cidadãos que abrigassem ou escondessem judeus era serem enviados para os campos de concentração ou a morte, mas ela não se intimidou com essas possibilidades de punição e os ajudou.

Senhora Miep Gies

Durante a resenha, eu acabei utilizando muito a palavra “propôs” devido ao fato de que a professora Erin não impunha as atividades; ela lançava propostas de atividades que eram discutidas com os alunos. Então, quando ela propõe que redijam cartas para a senhora Miep Gies, apenas como atividade escolar, logo um aluno sugere que as cartas sejam realmente enviadas e outro sugere, ainda, que a própria Sra. Miep seja trazida até a escola para conversar com os alunos. Ou seja, assim nasce um projeto, através do diálogo e das sugestões dos alunos envolvidos.
Para todas as dificuldades encontradas, os próprios alunos e a professora buscavam soluções, como, por exemplo, o levantamento de fundos que foi realizado através de feiras onde foram vendidos produtos, o que contribuiu para a arrecadação. E, o resultado é que eles conseguiram trazê-la até a escola e o encontro foi emocionante.


Visita da Senhora Miep Gies à Escola Wilson

Este é um filme emocionante e inspirador para a nossa prática, pois mostra que o aluno aprende fazendo e que ele precisa atribuir sentido ao que está fazendo, ao que está aprendendo. Durante o percurso da professora Erin na Escola Wilson, ela encontrou barreiras, incompreensão e falta de apoio da parte de seus familiares,  dos seus superiores e dos próprios colegas de profissão, mas isso apenas a impulsionou para que prosseguisse fazendo aquilo que ela acreditava ser o correto. Num trecho do filme, uma aluna chamada Eva agressivamente pergunta à professora: “O que você faz aqui dentro que muda alguma coisa na minha vida?” A resposta é simples: mais do que ensinar língua e literatura, Erin compartilhou com aqueles alunos valores como o respeito às diferenças, a tolerância, a aceitação de si mesmos e dos outros, transformando-os em pessoas melhores.




Referências: