segunda-feira, 30 de março de 2015

Resenha do filme: O dia em que Dorival encarou a guarda



Disponível em: www.youtube.com/watch?v=zRO1HIVkFTc


Escrevi esta resenha no ano de 2013 como trabalho individual referente à disciplina Leitura de Produções Artísticas, do curso de Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia, para obtenção da nota do semestre.
O dia em que Dorival encarou a guarda é um filme de curta-metragem, com duração de 14 minutos, realizado em 1986 e dirigido por José Pedro Goulart e Jorge Furtado.
O filme é uma adaptação do livro O amor de Pedro por João, com argumento de Tabajara Ruas e conta a história de Dorival que está encarcerado num quartel, sendo provável, portanto, que ele seja um soldado passando por um processo disciplinar. Dorival chama um praça que passava pelo corredor da carceragem e pede que ele o deixe tomar uma ducha fria, pois está há dez dias sem tomar banho, graças a uma ordem que o proíbe de tomar banho durante o dia.
O soldado recusa-se a atender ao pedido de Dorival, mandando que ele fique quieto e vá dormir, dizendo que existiam ordens para que não lhe fosse permitido o banho durante o dia. Dorival insiste argumentando que a proibição é para o período diurno e, já que é noite, não há razão para não deixá-lo tomar banho.
Diante da recusa do carcereiro em atender o seu pedido, Dorival começa a gritar, a berrar dizendo que vai fazer um escândalo tão grande que vai acordar todo o quartel. Pede, aos berros, que o soldado chame seu superior. Não sem antes ofendê-lo, chamando-o de "barata descascada", "polaco comedor de sabão", "catarina", "barriga verde", mostrando que, assim como há preconceito em relação à raça negra por parte dos brancos (demonstrado através de xingamentos como "macaco", "gorila", "crioulo", dentre outros), o negro também sabe expressar preconceito através de xingamentos ofensivos.
 Durante o curta são inseridas imagens que nos remetem a determinados estereótipos que circulam na sociedade, do tipo “ordens são ordens, não devemos questioná-las”, “a raça branca é superior”, “a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”, dentre outros. Ocorre uma intertextualidade, um diálogo entre o texto fílmico e as imagens de filmes antigos que permitem a leitura e a identificação desses estereótipos.

Segundo SANTANA,


No que concerne aos elementos indexicais, aqueles que funcionam como traços de outros, podemos colocar os sinais de intertextualidade, bem como algumas outras referências que apontam tanto para a narrativa quanto para o que é exterior a ela. Além disso, marcas como focalização, a narração sequencial, os nomes e as referências intertextuais parecem apontar tanto para a própria narrativa do romance quanto para objetos exteriores, atuando na interface entre o estático e a realidade sensorial e intelectual. A focalização permite jogar com o conhecimento do leitor, com aquilo que ele sabe e o que fica à sombra. (Santana, 2009, p. 35)


Dorival é um personagem negro, alto, corpulento. O praça é branco, altura mediana e franzino. Quando Dorival começa a berrar é inserida a imagem de um gorila pulando, gritando e batendo no peito, ou seja, foi feita uma comparação entre o personagem e o gorila.
Sequencialmente, também é inserida a imagem de um cantor também negro, que nos remete à afirmação de que o negro sempre transforma suas reclamações, lamentos e angústias em música, ou seja, "tudo dá samba".
O praça chama o cabo, que chama o sargento, que chama o tenente. Nenhum deles atende ao pedido do Dorival que, cada vez mais indignado, cospe no rosto do tenente. Dorival então lhes comunica que não existe nenhuma ordem para que ele não tome banho: foi um carcereiro que não gostava dele quem espalhou pelo quartel que havia tal ordem. Dorival, na verdade, põe à prova a autoridade dos seus superiores quando os ofende e desrespeita, questionando também a máxima de que uma ordem dada deve ser obedecida, sem questionamentos.
Dorival rebela-se contra o sistema, contra a hierarquia militar e sofre as consequências de seus atos. Mas, apesar de questionar o rígido sistema militar, de chamar todos os seus superiores de “merda”, em determinados momentos Dorival modifica sua postura de acordo com o militar a quem se dirige, mostrando que ele também está subordinado à hierarquia. Ao soldado, ele se dirige de maneira mais informal enquanto que para o cabo, o sargento e o tenente utiliza expressões que demonstram respeito como “o senhor”, “por favor”, “queria pedir licença” etc. Só quando constata que seu pedido não será atendido é que agride a todos indistintamente chamando-os de “paus mandados” e  “merda”.
Ainda de acordo com SANTANA,  


A partir da apresentação dos personagens, das suas falas, do enredo, na ordem e no modo como isso é feito, o leitor decifra e forma juízo a respeito da história. Uma característica normalmente presente no romance é a pluralidade de vozes, que não somente a do autor. Tons e opiniões diversos, frequentemente antagônicos, estão presentes.  Existe um plurilinguismo social e, a depender da temática, a presença de vozes de culturas diversas. As diversas vozes presentes na materialidade do texto indicam um determinado contexto social e histórico ao qual o discurso está associado. (SANTANA, 2009, p.33)


Qualquer semelhança com o sistema prisional brasileiro não é mera coincidência. Em vez de investigação inteligente utiliza-se a tortura como meio para obter confissões e para obter também o respeito às “autoridades”. E há quem defenda essa forma de atuação das autoridades, militares e policiais, para a manutenção da lei e da ordem.
O tenente que levou a cusparada no rosto, apesar de já estar acompanhado por quatro soldados, manda buscar reforços. Diz ao praça que dois homens são o suficiente para "dar uma lição" no prisioneiro rebelde, mas o soldado retorna acompanhado por quatro soldados. Então, o tenente ordena que a cela seja aberta. Diz para seus subordinados que é somente para dar algumas porradas no prisioneiro para que ele aprenda a respeitar a autoridade. Os oito soldados partem para cima de Dorival que, como bicho acuado, começa a gritar. Os soldados começam a golpeá-lo batendo nele sem a menor piedade, parando somente quando constatam que ele está desmaiado.
Como havia muito sangue na cela, o tenente ordena que seja feita a limpeza do local. Para que isso ocorra, torna-se necessária a retirada do prisioneiro. Daí, Dorival é carregado para o banheiro onde, finalmente, consegue tomar banho. Ironicamente, o cidadão só teve sua reivindicação atendida após ser agredido covardemente, até quase à morte, numa luta desigual e injusta.


Texto referência:

SANTANA, Sérgio Ricardo Lima de. As várias faces de Riplay: entre a literatura e as adaptações cinematográficas. 2009. 205f. Tese (Doutorado em Letras). UFBA, Salvador.